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Treino 3D - Corpo, Mente e Espírito, com Samorai

Bacharel em esporte, Samorai (@samorai3d) é criador do método de treinamento 3dimensional para reabilitação, prevenção e tratamento de lesões e performance. Aqui, auxilia praticantes e treinadores na busca por harmonia.
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Mito – Último capítulo

Por Samorai
Atualizado em 16 jun 2021, 09h19 - Publicado em 16 jun 2021, 09h18

“Somos o que fazemos, mas principalmente o que fazemos para mudar o que somos”

Eduardo Galeano

Eu já poderia começar a coluna de hoje me despedindo e encerrando por aqui, porque dificilmente vou conseguir escrever algo que seja mais preciso do que a frase do gênio Galeano. E ela cabe muito bem, porque nas primeiras dez semanas do meu curso de formação de profissionais de educação física para trabalhar com treinamento 3Dimensional (o curso tem 40 semanas), o mais importante é desaprender.

Desaprender é tão importante quanto aprender e, talvez, até mais difícil. É mudar o que somos, o que fazemos em prol de fazer e ser algo melhor, crescer, evoluir. Nessa trilogia dos mitos (leia o primeiro texto aqui e o segundo aqui) que hoje chega ao seu último ato, muita gente elogiou, entendeu, curtiu e no dia seguinte repetiu os mesmos mitos. Essa transição entre entender e fazer parece sutil, mas é um passo gigantesco e de muita coragem. Todas as pessoas de sucesso que conheço passaram por várias desconstruções para ser melhor amanhã do que hoje.

Existe uma frase comum de coaches, que faz muito sentido: o que você fez até agora foi o que te trouxe até aqui e o passo seguinte exige algo novo, e que muitas vezes necessita que você abandone o que te trouxe até aqui. O maior golfista da história, o americano Tiger Woods, desde que despontou era apontado como um fenômeno. Logo cedo, assinou contratos milionários e se tornou o primeiro esportista bilionário apenas com premiações e patrocínios.

Um dia, assistindo a um jogo dele pela televisão nos primeiros anos de carreira, ele se incomodou com o movimento de swing (aquele movimento que o golfista usa para bater na bola), chamou seu treinador, disse que o movimento era estranho e que queria mudar. O treinador disse que esse sempre fora o jeito dele fazer o swing e, embora não fosse tecnicamente perfeito, estava produzindo bons resultados. Se ele tentasse mudar a essa altura da vida, era bem provável que não alcançasse a mesma performance. Em outras palavras, o treinador achava loucura mudar isso.

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Porém, ele assumiu o risco, começou um trabalho para mudar, ficou 2 anos sem vencer nenhum campeonato e depois, 3 sem perder. Em 9 anos foi eleito melhor jogador da liga profissional de golfe dos Estados Unidos por sete vezes. E tudo isso nem sempre ficamos sabendo, que o sucesso é um caminho com muitos ajustes de rotas. Com certa frequência, precisamos mudar o que sempre fizemos, quando visões mais atualizadas ou adequadas aparecem. E é para isso que te convido agora, a pensar nesses mitos e observar que diversas respostas que você não está enxergando, várias dores que permanecem, talvez estejam ligadas a essas crenças que muitas vezes não se sustentam, mas estão tão no lugar comum que não observamos se elas realmente entregam o que disseram que entregavam.

O mito do manguito rotador

Não sei se você, querido leitor, sabe, mas fui atleta federado de handebol. Joguei por 20 anos e participei de torneios no Brasil e no exterior. Estive com a seleção da Polônia nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, chegando à semifinal. Sempre convivi com os maiores atletas de handebol do Brasil e do mundo. Por ser um esporte de arremesso em altíssima potência e com grande frequência de arremessos, muitos desses atletas tinham dores nos ombros. Eles desenvolviam tendinites que, inclusive, abreviaram suas carreiras. O mais curioso é que, ao relatarem dores, a indicação passada era para fortalecer o manguito rotador.

Talvez alguns leitores não sejam familiarizados com essa nomenclatura, mas, de maneira geral, o manguito rotador é um conjunto de quatro músculos que se fixam no braço e são um pouco mais profundos. No entanto, se preciso fortalecer algo, significa que isso está fraco. Se você já esteve em contato com um jogador de handebol profissional verá que não existe nada fraco nele. Aliás, se esse sujeito tiver algo fraco, significa que a humanidade já morreu de inanição. Um atleta como esse arremessa uma bola a 100 km/h e isso não é possível se algo estiver fraco, porque certamente não vai dar conta e estourar. Vi, durante anos, atletas “fortalecendo” o manguito e nunca passavam as dores, mas eles acreditavam que se não fizessem isso, que claramente não funcionava, seria pior.

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Esse tipo de estratégia se dá quando pensamos no corpo de forma isolada, dessa maneira você pode ter uma parte fraca e uma parte forte. Porém, quando pensamos no corpo de forma integrada, como uma reação em cadeia, todas as partes realizam a tarefa. Quando temos esse olhar, entendemos que infinitas possibilidades podem ser causas de uma dor no ombro ao arremessar e onde está doendo, no caso o ombro, não é o problema, mas a vítima de algo que não esteja em harmonia nessa cadeia.

O mais curioso é que toda vez que algo está fora da sua harmonia, o que colocamos para substituir é força, como abordei aqui no mito do fortalecimento (leia aqui). Logo, esse excesso de força pode, muitas vezes, ser a causa do problema. E fortalecer, quando a causa é excesso de força, não me parece a melhor das opções. Vou dar um exemplo mais prático. Uma causa muito comum nas dores de ombros de atletas de handebol que costumo atender é a falta de rotação torácica. Quando vamos arremessar uma bola, jogamos o braço todo para trás e, para que a cadeia seja harmônica, é necessário que o tronco acompanhe o movimento do braço e faça uma rotação para o mesmo lado do braço. Mas, se isso não acontece por uma limitação desse movimento na torácica, o braço vai sozinho e efetua esse arremesso sem o suporte desta. Isso sobrecarrega o ombro que, possivelmente, inflamará e começará a doer. Se a causa da dor é a falta de mobilidade torácica, por que fortalecer o manguito vai melhorar esse cenário? Exato, não vai. E pode até piorar, porque ao fortalecer você aumenta a tensão na região e, com isso, gera menos mobilidade, tornando o problema maior.

Outro ponto que quero abordar aqui são os testes para comprovar que o manguito está fraco. São testes isolados, nada funcionais. Movimentos que não têm nenhuma correlação com o arremesso. Quando você testa algo de uma forma não funcional, você não obtém a resposta funcional. A resposta não me diz se na condição funcional o músculo em questão não opera bem. É como testar um peixe pela sua capacidade de correr e concluir que se ele corre mal, também nada mal. Se você quer testar um corpo ou até parte dele em um movimento que é autêntico, singular, tridimensional e que funciona em reação em cadeia, sua avaliação tem que ser assim também, autêntica, singular, tridimensional. Ou sua resposta não responde nada e deriva para tratamentos que são ineficazes.

Mito do abdominal transverso e do glúteo médio

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De repente, vários clientes começaram a aparecer para meu atendimento com uma indicação de fortalecimento de glúteo médio e abdominal transverso. Tem dor lombar, fortaleça o glúteo médio e o abdominal transverso. A dor era no quadril, idem, na cervical, idem. A inflação subiu: glúteo médio e abdominal transverso. Seu time não sabe bater pênalti: glúteo médio e abdominal transverso. E por que isso ocorre?  Porque esses músculos, assim como o manguito, ficaram esquecidos por muito tempo.

Pensando em treinamento isolado, nunca treinamos nada disso. É sempre quadríceps, peitoral, glúteo máximo, grandes dorsais, abdominal reto e oblíquo, sempre para fortalecer quando se tinha alguma dor. Mas, se não estava funcionando, só pode ser alguma parte que não treinamos. Então, a coqueluche do momento são esses dois músculos. Assim como na lesão do ombro é o manguito. No entanto, acontece a mesma coisa como foi descrito acima. O corpo trabalha em cadeias e integrado, e fortalecer esses músculos não vai melhorar suas dores. Não adianta procurar por músculos pouco usados para tentar achar a nova bala de prata. Dessa forma, os próximos astros da vez serão fibular longo, tibial posterior, multífidus ou poplíteo, músculos esses que se você deu aula de musculação por 20 anos, nunca deu um treino voltado para eles. Entretanto, mesmo você desconhecendo esses músculos, eles também treinam. Então, não é pelo seu desconhecimento que eles estão destreinados, e se você sente alguma dor não é porque não os treina. Vou exemplificar melhor. Você sente dor nas costas porque pisa torto. Fortalecer abdominal transverso ou glúteo médio não vai mudar nada o fato de você pisar torto. E por isso, toda cadeia que nasce no chão, ao passar pelo seu pé, sobe de forma desarmônica, sua lombar não dá conta de acompanhar esse movimento e dói. Você pode fortalecer a vida toda esse glúteo médio que não vai acontecer nada, agora experimente corrigir sua pisada e verá que em muito pouco tempo suas dores vão embora.

Mito da fragilidade do corpo

Não pode fazer rotação da coluna, não pode fazer um valgo do seu joelho, não pode flexionar a coluna para pegar algo no chão, não pode correr porque causa impacto, não pode isso, não pode aquilo. Parece que somos feitos de cristais. E muitas dessas afirmações estão baseadas em testes feitos em cadáveres e avaliados de forma isolada. Logo, de uma forma não natural, não orgânica, não funcional. Nos testes em cadáveres se aplicam cargas em ossos que se fraturam a partir de uma certa força ou impacto. Mas, no corpo vivo e animado o resultado não é esse. E não é difícil perceber. E ainda assim, o mito prevalece.

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Outro erro é testar as partes isoladas e tirar conclusões de funcionamento integrado, como já mostrei acima. Quando estudamos a coluna lombar, vemos que sua estrutura mostra que ela não faz rotações relativas entre as vértebras, mas isso não significa que seu corpo, e principalmente sua coluna, de forma integrada, não possam rotacionar. Ao invés de evitar a rotação, o que você acha de praticar e aperfeiçoar esse movimento para que ele seja realizado sem que uma vértebra seja sobrecarregada? Mas isso não acontecerá evitando rotação. Aliás, quando evitamos isso ou aquilo, por uma lei do corpo de uso e desuso, nós o destreinamos, assim teremos menos capacidade de nos movimentar no futuro e teremos mais dor. O que fará com que façamos menos coisas para evitar doer, e como resultado, mais dor.

A maioria das pessoas que atendo chega com medo de tudo e ao começar a melhorar sua movimentação e se movimentar cada vez mais, elas melhoram. Vou exemplificar. Alguém com osteoporose busca atividades na piscina para evitar o impacto. Porém, é o impacto que fortalece o osso. Evitá-lo faz o osso ficar mais fraco. Então, o medo de quebrar o osso faz você se movimentar menos e, com isso, fica mais fraco e com menos capacidade de se movimentar. Quer melhorar? Movimente-se, vá se adaptando lentamente, mas sempre em progressão. Movimento é vida. Eu sei que o medo é um drive muito poderoso, mas com carinho, cuidado e acolhimento é possível ir gradualmente dando um passo de cada vez.

O mito da hipertrofia

Uma ideia consagrada é que quanto mais hipertrofia, melhor. Todas as pesquisas nessa área são para desenvolver o máximo de hipertrofia possível. Mas será que isso é verdade? É tão fácil observar que não. Pense em um maratonista. Será que se a musculatura dele dobrar de tamanho, ele vai correr a maratona mais rápido? Veja o Messi. Será que ele é um fenômeno no futebol porque tem muita hipertrofia? Será que se ele aumentasse sua massa muscular em 30%, ele seria melhor ainda? Pense em um nadador, em um contorcionista, em um piloto de avião, de Fórmula 1.

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Um maratonista não vai correr uma maratona em menor tempo se dobrar de tamanho, porque embora consiga produzir mais força, ele fica mais lento e ainda tem muito mais peso para carregar por 42 km. Uma bailarina pode ter até mais força para executar seus movimentos, mas talvez não consiga abrir um espacate porque esse excesso de hipertrofia pode reduzir sua mobilidade em função da tensão e do encurtamento gerados. O piloto de Fórmula 1 ficará muito mais desconfortável e limitado dentro de um “cockpit” e seu carro mais pesado, o que diminui a performance. O Phelps não ganharia suas medalhas com 20% a mais de músculo, porque eles pesam e afundam na água e fariam com que ele fizesse mais força para nadar.

A verdade é que, assim como tudo na vida, nada ao extremo é bom. Existe um ótimo para tudo. O excesso de hipertrofia só é interessante para o fisiculturista, porque ele não faz movimento. Para todo mundo que se movimenta, a quantidade de hipertrofia deve ser a que te gera melhor performance. E essa performance depende de vários fatores que têm que se harmonizar. Ou seja, embora sempre trabalhemos para ter mais hipertrofia, a verdade é que teremos sempre que testar e perceber se esse rendimento aumenta ou piora em função dela, e algumas vezes, até trabalhar para perder músculo para melhorar a performance. Quantas vezes você ouviu alguém falando que vai fazer um treino para perder músculo?  Entendeu por que é um mito?

E para finalizar, vou deixar um mito extra. De que preciso de musculação para desenvolver força. Força é uma grandeza da física, não da musculação. Pode ser desenvolvida de muitas maneiras e se manifesta de muitas formas. Musculação é apenas uma delas e uma das menos funcionais. Mas é um mito. Toda vez que alguém recebe uma notícia de que precisa fortalecer logo, pensa que precisa fazer musculação. Mas, o treinamento funcional, e em especial o 3Dimensional, também fortalecem, com a vantagem de serem integrados, tridimensionais e com transferência para a performance que você precisa, desenvolvendo a força e a hipertrofia ótima e não máxima.

Se você não acha que é dessa forma, que quanto mais hipertrofia melhor ou o treino isolado é o mais apropriado, aproveite que no mês que vem teremos os jogos olímpicos de Tóquio, onde estarão os melhores atletas do planeta. Procure algum fisiculturista lá. Mesmo em esportes que exijam força. Provavelmente, você não vai encontrar. Será que nenhum fisiculturista, com toda aquela “força”, não gostaria de ter uma medalha olímpica?

Que os mitos fiquem no passado.

Forte abraço,

Samorai

 

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